Viva Golfe – Fevereiro de 2024 – Uma questão de classe

Reprodução/Internet

Gosto de histórias exemplares no golfe, como na vida em geral, especialmente aquelas que nos ensinam e deixam claro que elas podem vir de todas as camadas sociais. E quando somos testemunhas oculares do ocorrido tomam um lugar muito especial na nossa mente. Uma dessas histórias reais veio de um ex-caddie que fez valer o princípio da igualdade e das regras do golfe, sobrepujando a força das diferenças sociais, ocorridas há quase 60 anos atrás.

As regras básicas desse jogo são claras e objetivas. Salvo os casos excepcionais onde a bola pode ser mudada de lugar pagando uma tacada de penalidade, de resto a bola deve ser jogada do lugar onde caiu, não podendo ser mexida ou melhorar sua situação. Por exemplo, um pequeno detalhe como pisar atrás da bola para afundar o solo e facilitar a tacada é um pecado sério e merecedor de penalidade. 

Assim é o jogo. Porém, como é muito forte o desejo de não perder a partida ou uma simples boa tacada, alguns golfistas se rendem aos deslizes. Nessas situações, as pessoas acabam mostrando os traços mais sérios e profundos de suas personalidades. E alguns acabam cometendo regularmente pequenas infrações e se acostumam a elas, respaldados pela posição social e pelo seu poder financeiro, achando que são intocáveis.

Assim pensava e agia o empresário John K., conhecido veterano que adorava “garfar” umas tacadas, e era mestre em cometer algumas transgressões nas regras do golfe. Como ele era um dos grandes patrocinadores dos torneios e eventos do clube, além de contumaz perdedor nas apostas que fazíamos, alguns parceiros revelavam suas traquinagens. A intocabilidade de John K. durou até o dia em que ele jogou com Josué, um moço na casa dos trinta e poucos anos, que era o chefe dos caddies (caddie master) de um pequeno clube de golfe no interior de São Paulo.

Com apenas o primário completo, Josué era um sujeito sério, compenetrado, cumpridor de suas funções, e, sobretudo, respeitador de regras e normas. Sendo assim, Josué não sabia relevar quando o assunto era justiça e honestidade em campo. Como um bom golfista de handicap 5, não admitia deslizes de quem quer que fosse. Quando estava fora de suas atividades profissionais, até que era meio brincalhão, mas bastava chegar no tee do 1 para ficar atento a tudo e a todos, feito um cão perdigueiro avistando uma caça. E naquele dia fatídico, a caça foi o arrogante John K. Tínhamos um grupo no qual fazíamos regularmente um sweepstake, que é aquela modalidade de aposta em que todos casam uma quantia e o vencedor leva tudo.

Numa quinta-feira do outono de 1965, numa tarde de temperatura amena, e, portanto, apropriadíssima para a prática do golfe, éramos onze jogadores apostando, divididos em duas turmas de três e uma de quatro jogadores. No grupo do Josué estava John K. Naturalmente, Josué não gostou de cair na mesma turma do “garfador”, pois ele tendia a ficar mais preocupado em policiar o parceiro do que jogar seu jogo. Mas os sorteios das turmas eram sagrados, e ninguém podia refutar qualquer parceiro. Seguindo as regras, lá se foi Josué carregar a cruz.

Como além do sweepstake havia apostas cruzadas para dar um sabor adicional ao jogo, nós sempre parávamos no buraco 17, examinávamos os resultados e a situação de cada jogador, e assim apostamos algo especial para o buraco 18. Naquela tarde de outono não foi diferente. Terminamos o buraco 17 e ficamos todos esperando a última turma, que era exatamente a do Josué e a do John K.E valeu a pena esperar, pois o que aconteceu em seguida foi uma das cenas mais exemplares que presenciei num campo de golfe. O Josué já estava com sua bola no green, aguardando a chegada de seus parceiros. Pouco depois, John K. entra no green e vai marcar sua bola, que estava a pouco mais de três jardas do buraco.

Mas John não é o tipo de jogador que simplesmente marca a bola: com a moeda, ele a empurra uns cinco centímetros para frente, antes de marcá-la em definitivo. Todos nós percebemos o que ele havia feito, incluindo, claro, nosso zeloso Josué, o qual, para minha surpresa e a de todos, optou por relevar o fato. Quando chegou a vez de John K. recolocar a bola no lugar para dar sua tacada, ele novamente deu um jeito de ganhar mais alguns centímetros. Foi a gota d’água. Josué não se conteve, e exigiu que ele recuasse a bola uns dez centímetros.

Foi quando houve um choque de classes sociais. O empresário John K., do alto de sua arrogância, não perdoou a ousadia daquele ex-caddie. Entre inúmeros impropérios que não carecem ser repetidos aqui, disse a Josué que ele enxergava muito mal, pois a bola havia sido marcada corretamente. Apesar de ter a mais humilde posição entre todos os jogadores ali presentes, Josué não só confirmou a exigência de voltar a bola, como disse que John K. que ele era um contumaz desrespeitador das regras, e que todos ali estavam cansados de suas atitudes pouco condizentes com o espírito do golfe.

A firmeza de caráter de Josué, sua confiança na superioridade do golfe e na igualdade de todos dentro do campo, impressionou a todos nós – e, deixou pasmo o até então intocável John K., que demorou alguns instantes para recuperar a compostura e quando a recuperou, resolveu perguntar a todos nós se era verdade. Dissemos que sim, que Josué estava coberto de razão. Imediatamente, o clima entre nós, naquela agradável tarde de outono, tornou-se pesado. Diante da situação, John K. não teve alternativa a não ser recuar sua bola para a posição original.

E como não poderia deixar de acontecer, ele bateu o putt e sua bola ficou a uns dez centímetros do buraco! Apesar do clima já ruim, Josué não se conteve e explodiu: “Estão vendo? Se ele não volta a bola para o lugar certo, ele teria embocado. Senão fico em cima desse “garfador”, ele ganha o buraco e toma o pouco dinheiro que eu tenho, e o de vocês também, seus tontos!” Josué disse isso com uma expressão tão engraçada, com tanta simplicidade e com uma voz tão alterada, que tudo tornou-se imediatamente cômico e caímos na gargalhada. O duro e desagradável que ao reescrever esta história em 2024, é saber que ainda temos nos campos de golfe do mundo, muitos “John K”, que esquecem que esta atitude de descumprir uma regra básica tiram o brilho desse jogo espetacular.  

Viva o golfe!

Já está indo embora :´(
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