Audácia, coragem, paixão e conquista

Reprodução/Internet

Contar uma história real nem sempre é uma tarefa fácil, uma vez que a realidade é senhora dos nuances e dos mínimos detalhes. Omitir pequenos passos acabam dando nova dimensão para a história, as vezes mudando até o seu curso. Por isto vamos retroceder ao estalo inicial da ideia de participar de um meio ironman em dupla, sendo um atleta amador e um não atleta com paralisia nos membros inferiores. Vamos começar pelo perfil dos parceiros, de um lado Felipe, empresário do ramo hoteleiro, com 41 anos de idade, amante dos mais diversos esportes, desde tenra idade. Foi educado pelos mesmos princípios do esporte de alto performace que o pai também fora, isto é, disciplina, dedicação e foco. Começou com o bicicross aos 5 anos, durante 6 anos competiu quase todos os fins de semana, ganhou neste período quase todos os campeonatos paulistas, e quando tinha 11 anos ficou em 2º no campeonato brasileiro e 6º no mundial. Quando na segunda bateria, sofreu um acidente muito feio e decidiu nunca mais subir numa bike de corrida (de BMX). Neste mesmo ano foi apresentado ao golfe, onde o pai era um bom jogador, durante dois anos ele não assimilou a mudança, mas para agradar ao pai, resolveu se aplicar muito nos treinamentos, como acontece com os estudiosos das mais diversas matérias, a medida que foi dominando os segredos do esporte passou da indiferença ao gostar muito. Tanto foi assim que aos 15 anos se tornou o melhor jogador do clube, criando um sonho na cabeça do apaixonado pai de um grande futuro dele no esporte. Como um ser irrequieto por natureza, numa linguagem mais popular, um jovem ligado no 220, resolveu o nosso Felipe treinar também jiu jitsu, para extravasar aquela energia toda que o golfe não absorvia. Dois anos depois ao visitar um ortopedista para checar uma pequena fratura na mão, demonstrou uns movimentos esquisitos no ombro, o médico pediu que ele parasse de imediato, pois estava deslocando os mesmos. Depois de consultar os melhores especialistas do país, o diagnóstico foi muito preciso, ele tinha um problema genético e provavelmente mesmo operando o ombro voltaria a deslocar. Passou os seis meses seguintes beirando ao desespero, pois talvez não pudesse mais praticar nem o golfe, muito menos o Jiu-Jitsu. Mas quis o destino e a perseverança dele e de seus pais, encontrar um médico, que transmitiu segurança, tranquilidade e sensatez, ao explicar que ele tinha frouxidão ligamentar generalizada, que se manifestou de maneira mais aguda nos ombros. Feita a cirurgia e muita fisioterapia, 18 meses depois lá estava o Felipe com ombros novos e com toda a musculatura fortalecida, e o mais importante liberado para os esportes. Passou este período de ociosidade esportiva, pesquisando sobre esportes radicais, e acabou conhecendo a mais dura de todas elas, o Iron man. E criou um sonho de olhos bem abertos, que era tão logo ficasse bom que passaria a se preparar para um dia fazer uma prova de iron man completa. Contar aqui todo o processo, todos os perrengues, todas as dificuldades, todos os machucados, ou mesmo as lições e apoio que recebeu de excelentes profissionais, treinadores, médicos, nutricionistas, fisioterapeutas e principalmente da sua mulher, que é também uma atleta nata, e de sua família, eu precisaria escrever um grande livro. Mas o que importa para nossa história do meio iron man em dupla, foi que no dia 30/05/2010, ele cruzou a linha de chegada do seu primeiro iron man em 10 h e 14 m, uma hora a menos que previu seu treinador, e nascia ali uma semente de um novo sonho, uma vez que o grande desafio até então, estava plenamente superado. Felipe veio depois de muito tempo a descobrir qual seriam seus próximos grandes desafios. Mais isto vamos comentar mais adiante, agora vamos falar do outro jovem de 26 anos, Jonatan, cuja luta diária vem desde a primeira infância, cujas agruras tornam, como diz seu parceiro Felipe as suas um passeio no parque. Jonatan nasceu de 7 meses, com uma paralisia cerebral grau 3, cuja patologia afetou suas pernas, fala e pulmões. Ao longo de sua ainda jovem vida, passou por nada menos que 33 cirurgias para conseguir andar com muletas e ter depois de tudo isto uma vida mais autônoma. Sua condição de nascimento gerou um tremendo choque em sua jovem mãe biológica, ao ponto de ela não ter estrutura emocional para criar uma criança naquelas condições. Mas a mão do Criador apareceu muito cedo, ao colocar na sua vida uma excepcional criatura, cujo amor incondicional, fez dele desde os primeiros anos de vida e até hoje um ser diferenciado em todos os aspectos. Esta mulher incrível é sua avó/mãe, com quem vive até hoje. E não vamos aqui dramatizar a vida do Jonatan, porque ele antes de tudo é um bravo com um extraordinário poder mental, e cuja alegria de viver abraça a todos que tem a oportunidade de conviver com ele. Seu bom humor é uma lição de vida, para aqueles que com mais facilidades do que ele, vivem de mal humor. Trocando em miúdos Jonatan é um cara de bem com a vida. Agora aos 26 anos está no terceiro ano da faculdade de educação física e sonha em ter uma academia para pessoas com deficiência. E é também um esportista nato, pois pratica diversas modalidades paralímpicas. 

Apresentada a dupla de competidores, vamos mostrar como aconteceu a decisão de participar do meio iron man de Floripa, também chamado de 70,3 Iron Man, pois tem 1.800 metros de natação no mar, 90 quilômetros de bicicleta e 21 quilômetros de corrida.  

Arquivo Pessoal

A ideia foi do Felipe, que como todos nós sofreu muito durante a pandemia de covid, e como um ser movido a desafios que gosta de ajudar pessoas também, pensou em procurar um parceiro com limitações físicas, no início de 2021, para formar uma equipe, inspirado no Time Royt que unia pai e filho com deficiência física, que completou dezenas de maratonas e conseguiu também terminar dentro tempo no Iron Man Havai. E criou um mantra “vou fazer uma prova de triátlon de longa distância levando uma pessoa com algum tipo de patologia”. E batizou o seu projeto de Equipe Supera. Antes de delinear o planejamento por completo para a prova, para não errar principalmente, na montagem dos equipamentos, sem conhecer claramente a deficiência física do seu parceiro, tinha que encontrar a pessoa imaginada. Pesquisando na internet Felipe encontrou o Edu da Ong Pernas de Aluguel, que o apresentou Jonatan. Com uma comunhão instantânea, Jonatan ouviu a ideia de Felipe, e aceitou o desafio de se preparar para esta prova tão dura. Conhecendo a deficiência física do parceiro, em especial seu peso, poderia agora começar ativar seu planejamento, que de forma sintética assim ficou:

  • Encontrar os melhores profissionais para prepará-lo, que nesta prova iria “carregar” alguém com 52 kg.
  • Escolher e inventar equipamentos, e achar quem poderia produzir.
  • Fazer testes dos equipamentos e promover os ajustes necessários.
  • Montar calendário de provas
  • Estudar e implementar treinamentos e logísticas.
  • Prever a primeira prova de 21 km.
  • Estudar e planejar possíveis imprevistos (Tombos, lesões, e outros problemas de saúde da equipe).
  • Simulados de competição 
  • Viagem para Floripa
  • Planejar os tempos da natação e do ciclismo para ficar ao limite de 5 horas exigido pelo comando da prova. 

Seguindo o planejamento e como não existe um caminho das pedras feito para esta modalidade, Felipe não teve outro modus operandi de atuar, a não ser usar o método da tentativa e erro. Se espelhou nos equipamentos das equipes que tinham feito desafios semelhantes no exterior. Com três modalidades distintas a ser vencida na prova, Felipe começou a pesquisar pelo bote que levaria o Jonatan mar adentro na natação, na primeira tentativa não foi feliz,  gerou até muitos risos em casa, pois o bote era para 8 pessoas e não cabia nem na sua sala de estar. Mas em seguida achou um que deu certo, alívio geral. Para o ciclismo a coisa ficou muito mais complicada, Felipe foi a uma fábrica de triciclos para corrida e explicou que precisava de algo mais leve, rápido, sem perder a segurança e ainda, que fosse criada uma peça que permitisse a adaptação atrás na bike. Conseguiu a quatro mãos com o dono da fábrica fazer a peça, que seguro do que tinha feito aceitou substituir no teste ficando no lugar do Jonatan. Felipe não podia correr risco, por isto para testar desceu uma grande ladeira com curva pelando rápido. Triciclo mais que aprovado. O triciclo pesando 15 kg e mais os 52 kg do Jonatan, acabou no primeiro teste de corrida quebrando o quadro ao meio da bicicleta especial de corrida. Voltando a pesquisar e fazendo algumas adaptações numa bicicleta para montanha foi a única saída. 

Os treinamentos começaram em setembro de 2021, 18 meses atrás, e como o Jonatan precisou passar por 3 cirurgias neste período, foram obrigados a postergar o início das competições. Felipe treinando sozinho 6 dias por semana e uma vez com o Jonatan. Este por sua vez tinha treinos diários também, para voltar a andar com suas muletas, melhorar sua respiração e sua fala. Eles fizeram melhor preparação possível e estavam prontos para a prova e segundo Felipe, só tiveram uma falha, que foi não treinar nenhuma vez no mar, treinaram natação três vezes numa represa. 

Arquivo Pessoal

Há dois dias da prova se deslocaram de São Paulo para Florianópolis, Santa Catarina, Felipe e Jonatan, foram de carro com todos os equipamentos necessários. A equipe de apoio restrita a família de Felipe, pai, madrasta, mulher e seu filho de 9 anos, foram de avião. Chegaram durante o início da madrugada do sábado, e na parte da tarde desse dia véspera da prova foram até o local para obter o credenciamento, brindes, pegar o chip que é instalado em todos os competidores, para o controle de tempos e que permite a equipe de apoio acompanhar todo o transcorrer da prova. E para deixar com a equipe organizadora do evento, a bicicleta, o triciclo já atrelados e o bote que seriam usados na competição.  Como a viagem de São Paulo foi meio cansativa, Felipe e Jonatan foram dormir mais cedo possível, para estarem no local da prova as 5h da manhã, a competição começaria as 6h, o mais descansados possível. Chegaram rigorosamente na hora programada junto com a equipe de apoio. Como era uma prova por tempo e com mais de 2.000 participantes, Felipe resolveu ficar no fim da fila de saída, para evitar atropelamentos desnecessários. Enquanto isso a equipe de apoio, ficou junto ao bote com Jonatan bem perto da arrebentação das ondas, naquele momento o mar estava mais agitado do que eles tinham imaginado o que deixou Jonatan receoso. Enquanto a equipe de apoio empurrava o bote mar adentro, Felipe pegou o Jonatan nos braços para embarcá-lo de forma mais tranquila no bote. Como eles eram os últimos a iniciar a natação isto deu um pouco de sossego e permitiu que Felipe fosse progressivamente aumentando o seu ritmo das braçadas, e para evitar atrapalhar os demais competidores Felipe optou por um percurso maior que o normal. Mas teve um momento de estresse já quando a natação estava caminhando para a fase final, um competidor agarrou o bote e tentou subir, pois estava em uma crise de pânico. Mas também teve um outro momento, em que eles estavam superando alguns adversários, quase passando com o bote por cima, quando uma mulher deu uma tremenda bronca no Jonatan, eles acabaram rindo do episódio. Saindo do mar ao terminar a prova de natação, Felipe deixou o bote a cargo da família, colocou o Jonatan nos braços e correu com ele uns 100 metros, numa areia muito fofa até encontrar uma cadeira de rodas que ele deixou estrategicamente preparada, pois a zona de transição para pegar a bicicleta e o triciclo ficava perto de 700 metros d’água. Este não foi um dos momentos mais fáceis da prova. Já um pouco cansados da prova de natação Felipe pegou a bicicleta e colocou o Jonatan no triciclo devidamente amarrado. Já na bike Felipe e Jonatan sabiam que o grande desafio era terminar as duas primeiras etapas nas 5 horas obrigatórias. Mesmo Felipe fazendo muita força a velocidade ficou aquém da projetada por eles. Faltando apenas 500 metros eles estavam exaustos, e tinham duas preocupações, conseguir cumprir o tempo limite e saber se Felipe teria pernas para a corrida. Neste momento apareceram as 5 motos que estavam os escoltando e começaram a buzinar e acelerar, e o narrador da competição avisava que estavam chegando. Ai um momento de extrema êxtase, que ficara marcado para sempre na vida de Felipe e de Jonatan, foi o público daquele local, estimado em 1.000 pessoas, surpreendendo-os com muitos aplausos e gritos de incentivos. Felipe estava tão cansado nesta nova transição, que não conseguia entender nem uma palavra que dizia sua mulher que os ajudava, e esqueceu da sua alimentação e da hidratação. Mas num passe quase de mágica vestiu seu tênis e partiu para a corrida dos 21 quilômetros faltantes.  E não demorou muito para começar acelerar o ritmo e as pernas responderem a altura. Neste momento respirou fundo e agradeceu os responsáveis pela sua preparação física, sua mulher Dani e a EQ Performance. Felipe parou rapidamente nos postos de hidratação para tomar tudo que tivesse e colocar água gelada na sua cabeça. Compartilhando sempre com seu parceiro Jonatan, destacou que eles conversaram durante toda a corrida, estavam se sentindo bem e muito felizes. Especialmente quando eles passavam perto de núcleos de espectadores, que os incentivavam com gritos e aplausos. Em muitos momentos eles pareciam estar nas montanhas do Tour de France, quando as pessoas tentam empurrar e animar os competidores. Neste momento eles fizeram valer a frase antológica do pensador grego Aristóteles, “Amizade é uma alma com dois corpos”. Com uma energia extraordinariamente mútua, foram vencendo os quilômetros até o final da prova. E o último quilometro não poderia ser mais auspicioso do que foi, o grande público ovacionando e aplaudindo, se juntava aos batedores que faziam a escolta para um triunfo, e há 100 metros do portal final onde o sino é batido encerrando a prova, eles num gesto de comunhão maravilhoso e quase imperceptível deram as mãos para chegar como uma alma única. A conquista tinha sido realizada. Felipe e Jonatan constataram que seus limites foram muito além do que tinham imaginado. E o objetivo de motivar pessoas a fazer exercícios tinha sido alcançado, sem falar que houve muitos depoimentos de pessoas nos treinos, durante e pós prova que ratificou que eles estão na direção certa. E já estão planejando para o segundo semestre correr uma maratona. Para isto Felipe já esta a procura de um triciclo mais leve, para ter mais velocidade e aí quem sabe conseguir fazer o Iron Man Full ( 3,8 km de natação, 180 km de bike e 42 km de corrida). Perguntei ao Felipe o que ficou desta heroica conquista, ele sem pestanejar, disse que isto só foi possível graças ao extraordinário comportamento e disposição do Jonatan, que merece sem dúvida nenhuma os maiores cumprimentos. Destacou também a sorte de ter a seu lado uma família presente, que o apoia e que são esportistas ultracompetitivos. Destacando que só os esportistas podem entender a magnitude desta competição e tudo que eles passaram. Não esqueceu de comentar sobre a avó do Jonatan, que segundo ele vale por 10 famílias, pois ela o apoiou durante todo processo e comemorou muito com a conquista. Por fim, e não menos importante, foi o comportamento de seu filho de 9 anos Gabriel, que ajudou nos preparos e durante toda a prova. E tem certeza, que ele que já é uma criança madura para a idade, teve muitos ensinamentos, especialmente por ver o seu pai chegar por último na prova e ser mais aplaudido que o primeiro colocado.

Uma lição de vida para todos nós, de audácia, coragem, paixão e conquista.

Já está indo embora :´(
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