Diante da atual pandemia, se existe um território que sintetiza os dramas humanos a as incertezas causadas pela Covid-19, esse lugar é a Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Como médico, ao longo de minha vida profissional, estou acostumado com as angústias de trabalhar em um local em que a vida e a morte fazem parte do cotidiano. Decidi escrever sobre esse assunto, pois, nessas últimas semanas, com a ampliação de casos e o consequente aumento de ocupação de leitos, vivenciei histórias e ouvi relatos de colegas de trabalho que marcarão o resto de minha vida. Acompanho a diferença dos relatos enfrentados por amigos médicos que estão na linha de frente das UTIs em diversas localidades do Brasil. Mesmo com melhores condições de trabalho, temos de lidar diariamente com cenas inéditas. Observo, por exemplo, tomografias com o pulmão tomado por infiltrações e com manchas brancas por todos os lados. Outra dificuldade que enfrentamos é acalmar o paciente em meio a tantas notícias sobre a doença. É comum que a pessoa internada, ao saber do diagnóstico, fique angustiada e com medo. Muitas são tomadas por um pânico, que eu, mesmo acostumado com o dia a dia de uma UTI, nunca tinha presenciado. Nesse sentido, humanizar o tratamento, explicar ao paciente como se dão os sintomas e acalmá-lo, é tarefa essencial.
Desafios diários
Confesso que o mais difícil é explicar aos familiares que eles não podem fazer visitas, pois estas são restritas. E ouvir de pais, filhos e esposas palavras imbuídas de muito amor, e vontade de dar uma palavra de consolo, de estar próximo ao seu ente querido em um momento de tanta incerteza. Mesmo assim, ter de explicar que, para seu próprio bem, eles não podem se aproximar de seus parentes, corta o coração de qualquer ser humano. Antes da pandemia, após um plantão de 24 horas, voltava para casa e sentia o abraço dos meus filhos e o carinho da esposa, isso recarregava minhas energias. Com a propagação da doença, volto para o lar com o receio de infectar as pessoas que mais amo. É evidente que tomo as precauções, mas todos os profissionais de saúde relatam que a maior fobia vivenciada nessa pandemia é a de transmitir o vírus aos seus entes queridos. No hospital em que trabalho, vivemos momentos difíceis e angustiantes, porém são os relatos de colegas de profissão que atuam em diferentes unidades da rede pública que mais me preocupam. As situações vivenciadas por eles deixarão feridas que serão difíceis de cicatrizar.
A grande maioria trabalha em condições muito complexas. Para ter uma ideia, logo no começo da pandemia, ouvi de um amigo que sua unidade estava sem equipamentos individuais de proteção e ele teve de tomar uma decisão dificílima. Um paciente infectado precisou ser entubado, mas ele não dispunha de máscara, mesmo assim, ele fez o procedimento; evidentemente ele foi contaminado, afastado e hoje está de volta ao trabalho. Quando me contou essa passagem, só tinha uma coisa a lhe dizer: você foi um mártir, arriscou sua vida para salvar a de outrem.
Escolhas difíceis
Outros pontos abordados pelos colegas da rede pública são a falta de exames para os profissionais da saúde e a demora dos resultados para o diagnóstico dos pacientes. Na rede privada, esses exames saem em poucas horas; na rede pública, muitos pacientes já estão em casa quando o resultado do exame chega. Nas mensagens que trocamos em grupo de WhatsApp com amigos de faculdade, um relato chamou muito a minha atenção. Um dos participantes que trabalham na rede pública de um hospital no Rio de Janeiro deparou com uma escolha muito difícil: com o iminente colapso de sua unidade, teve de enfrentar uma questão que espero nunca enfrentar: com emergências lotadas, ele foi obrigado a avaliar quem teria direito a um leito de UTI. A mensagem emocionada postada no grupo narra um dilema profissional que não nos ensinaram nas universidades. Numa determinada noite, esse amigo estava de plantão, e a emergência só dispunha de um respirador. Ele acompanhava uma idosa que ainda estava conseguindo engolir e comer, porém, sabia que a qualquer momento ela precisaria daquele respirador. Eis que adentra a unidade uma paciente em estado ainda mais grave, que precisou ser entubada imediatamente. Pouco tempo depois, a idosa que ele tinha visto mais cedo, piorou, precisou do respirador, no entanto, ele já havia usado na paciente que chegou em estado grave.
Singela homenagem
Outros colegas que trabalham na rede pública do Estado de São Paulo também relatam dificuldades, porém, um número tem chamado atenção: a letalidade do Covid-19 no Estado é de um a cada cinco pacientes internados em UTIs. Ouço todos os dias desses amigos que a doença é mais grave do que estamos pensando, e que o Covid-19 não afeta somente o pulmão. É uma doença sistêmica, sendo que quatro, em cada dez pacientes, apresentam problemas nos rins e precisam de diálise. Fomos surpreendidos por uma doença muito nova. Apesar do esforço mundial dos pesquisadores, temos mais perguntas do que respostas. O trabalho na UTI me revela todos os dias que, por trás de cada número do coronavírus, existem vidas, dramas e vitórias. Quando saio de casa para trabalhar no hospital, lembro-me sempre de dois grandes amigos que essa doença levou embora, minha amiga Katia Kohler, médica, coordenadora do núcleo de Ginecologia e Obstetrícia, em Santana de Parnaíba e meu colega de plantão Dr. Frederico Jota S. Lima. Em nome deles, finalizo cumprimentando todos os profissionais de saúde que hoje se arriscam no território das incertezas das UTIs Brasil afora, para salvar a vida de seus semelhantes.
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