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A relação luso-brasileira é uma das mais antigas no panorama internacional, remontando a mais de cinco séculos de história partilhada. Considerando o atual contexto geopolítico, onde novas potências emergem e alianças se reposicionam, como define hoje a relevância estratégica do Brasil para a política externa portuguesa? Esta relação continua a ser prioritária?
Eu diria que o Brasil é hoje mais relevante do que nunca para a política externa portuguesa. E o melhor exemplo de que a nossa relação bilateral continua a ser prioritária é muito recente. No passado mês de fevereiro realizou-se em Brasília a 14ª Cimeira de Líderes. Vieram ao Brasil, com o Primeiro-Ministro português, 11 membros do nosso Governo. Entre as reuniões havidas, os 19 instrumentos jurídicos que foram assinados e o fórum empresarial realizado em São Paulo, cobrimos praticamente todas as áreas possíveis, de um relacionamento denso e intenso.
Isto acontece quando celebramos 200 anos do estabelecimento de relações diplomáticas entre os dois países. No Rio de Janeiro, em 29 de agosto de 1825, foi assinado o Tratado de Paz, Amizade e Aliança, que reconheceu a Independência do Brasil e pôs fim à Guerra da Independência, dando início à “mais perfeita amizade”, conforme o seu Artigo 4º.
A densidade e a singularidade desta relação têm uma projeção muito relevante na política externa portuguesa, que extravasa o nosso espaço geopolítico natural – norte-atlântico e europeu – e onde os laços históricos de amizade e de cooperação com países como o Brasil e restantes nações de língua portuguesa ocupam um lugar cimeiro e prioritário, independentemente dos ciclos políticos.
É relevante lembrar a este propósito que, além das Nações Unidas, onde ambos os países ganharam credencial por defenderem a promoção da paz, do diálogo, da cooperação, da prosperidade e na resposta a desafios globais como a luta contra a fome e o combate às alterações climáticas, Portugal e o Brasil partilham dois espaços multilaterais de importância crescente: a Comunidade de Países de Língua Portuguesa e a Ibero-América.
É para mim uma grande honra e alegria, enquanto Embaixador de Portugal, testemunhar, a partir de Brasília, esta ligação vibrante, que tem passado, presente e muito futuro!
Desde os tempos da independência do Brasil até à atualidade, a diplomacia entre os dois países conheceu fases de maior e menor proximidade. Quais foram, no seu entender, os momentos-chave dessa relação e que ensinamentos deles retiramos para lidar com os desafios contemporâneos?
A independência do Brasil aconteceu de um modo absolutamente excecional, marcado pelo que aconteceu antes, e que marcaria em grande medida o que aconteceu depois. Não esqueçamos que o Rio de Janeiro foi durante alguns anos a capital do império português!
É natural que em 200 anos uma relação, mesmo com muito sólidos alicerces, passe por períodos de maior e menor intensidade. O importante a reter, julgo, é que essa relação nunca esteve sequer perto de atingir a irrelevância. E porquê? Sobretudo porque as pessoas, então como agora, é que contam.
A principal chave do entendimento entre os dois países é por isso, seguramente, a estreita relação entre os nossos povos, que considero um fator determinante no relacionamento bilateral, da solidariedade estrutural, de uma amizade sem paralelo.
Portugal e o Brasil, em momentos distintos da sua história, acolheram imigrantes provenientes dos dois lados do Atlântico, mesmo em contextos políticos e económicos mais desafiantes, um sinal inequívoco desta amizade sólida.
E essa amizade foi exemplarmente evocada no dia 8 de setembro de 2022, em Brasília, pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que proferiu uma intervenção notável no Senado brasileiro, nas cerimónias do Bicentenário da Independência do Brasil. O Presidente português lembrou na ocasião outra cerimónia, cem anos antes, quando o então Presidente António José de Almeida, na sua “viagem gloriosa ao Brasil”, quis dar um abraço fraterno a este país na primeira visita de um Chefe de Estado português desde que a corte para aqui se mudara em 1808.
A língua portuguesa constitui talvez o mais profundo elo entre Portugal e Brasil — uma herança comum que, para além da história, continua a estruturar identidades, afetos e horizontes partilhados. Sendo a língua simultaneamente um património, é uma ferramenta de projeção internacional, como avalia hoje o papel do português como instrumento de soft power no Brasil? Que potencial permanece ainda por explorar, nomeadamente nos domínios da cooperação educativa, da promoção da norma europeia e da valorização editorial da diversidade linguística no espaço lusófono?
Deixe-me traduzir a expressão “soft power” por uma portuguesa, prefiro falar da nossa língua como instrumento de poder suave ou poder de convencimento.
A língua portuguesa, o português, é hoje em dia um instrumento de trabalho, de relacionamento, de difusão cultural, intelectual e econômica comum a milhões de falantes e usuários espalhados por todos os continentes. O português “desperiferizou”, por assim dizer, Portugal que eleva assim a sua língua materna a um patamar saudavelmente competitivo com as chamadas “línguas francas” contemporâneas, estando naturalmente o eixo luso-brasileiro-africano na primeira linha deste sucesso indesmentível.
Aí, evidentemente que o Instituto Camões, com as suas redes, particularmente ricas e frutuosas no Brasil, bem como através da parceria estratégica com o Instituto Guimarães Rosa, tem um papel fundamental na promoção da língua comum e no intercâmbio muito ativo entre os dois países nos vários domínios culturais, desde as artes performativas à literatura, às artes pictóricas, arquitetônicas e outras, como exemplifica presentemente a nossa embaixada com uma exposição da consagrada artista Joana Vasconcelos a propósito do qual várias iniciativas pedagógicas, de acompanhamento guiado e de interpretação da obra já intensa da artista têm permitido a escolas, visitantes e apenas curiosos tomar contacto e interagir com uma das obras mais originais do contemporâneo, como tal mundialmente reconhecido.
Por outro lado, e no plano do livro, a participação de escritores portugueses nas diversas “feiras” e festivais espalhados anualmente por várias cidades do Brasil, com destaque no ano corrente para o Rio de Janeiro, são uma constante e uma linha de orientação fundamental na nossa atividade.
Na Cimeira de Brasília, Portugal e o Brasil reiteraram o seu compromisso de promover e valorizar a língua portuguesa, incluindo a tomada de medidas que permitam o alargamento gradual da sua utilização no quadro das Nações Unidas, tendo em vista o objetivo de tornar a Língua Portuguesa Língua Oficial das Nações Unidas.

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Num país onde o português é língua oficial há mais de dois séculos e onde a norma brasileira predomina naturalmente em todos os setores da vida pública, o ensino e a promoção do português europeu continuam a representar um desafio diplomático e pedagógico. Que estratégias têm sido desenvolvidas para afirmar a pluralidade da língua portuguesa no Brasil, sem cair numa lógica concorrencial?
Como afirmei anteriormente, a língua portuguesa é uma prioridade da diplomacia portuguesa em várias vertentes. Veja a aposta na ONU, na CPLP enquanto instrumento decisivo, na pluralidade e no compromisso, na promoção da língua, os mais recentes protocolos assinados por ocasião da cúpula luso-brasileira de fevereiro, aqui, em Brasília, o prémio Camões onde constam já dos mais prestigiados nomes da literatura que se escreve em português de Portugal, do Brasil ou de África (Adélia Prado é o mais recente nome ilustre dessa lista) e, insisto, o permanente intercâmbio, no caso do Brasil, muito diversificado no campo cultural entre ambos os países com uma presença ativa de artistas, músicos, escritores, etc., nas maiores e mais importantes manifestações culturais brasileiras. Procuramos calibrar história e tradição (o nosso fado, que é sempre tão bem acolhido aqui) com modernidade, ação, contemporâneo, atentos ao melhor que fazemos lá e cá, num diálogo franco, alegre e não competitivo que frutifica a cada ano que passa, o que, institucionalmente muito nos satisfaz. Para nós, a cultura é o coração que bate em português ligando, pelo mar, continentes e povos com uma relação convivial única no mundo. Exemplar, diria.
Dito isto, sim, há margem para uma maior formalização dessa dinâmica (referi os protocolos recentes), nomeadamente através de acordos de coprodução, bolsas culturais, ou intercâmbios artísticos, que possam promover não apenas a troca de ideias e talentos, mas também consolidar o potencial da cultura como um vetor de poder suave nas relações bilaterais.
A diplomacia económica é hoje uma dimensão crucial da ação externa. Como tem sido o envolvimento da Embaixada na atração de investimento brasileiro para Portugal e vice-versa? Existem setores prioritários claramente definidos?
Na minha atividade enquanto embaixador de Portugal, tenho o dever de atribuir igual importância às áreas institucional, cultural, consular e económica.
Para mim, portanto, não é de hoje, é de sempre.
No caso do Brasil, que é um parceiro económico de Portugal cada vez mais relevante, tenho a felicidade de poder contar com várias estruturas sólidas de apoio. Desde logo a representação da AICEP, que está muito bem entregue e cuja tarefa principal é justamente, a par da promoção das exportações portuguesas para o Brasil, a captação de investimento brasileiro para Portugal. Mas também 19 Câmaras de Comércio portuguesas, espalhadas um pouco por todo o país, que estão a desempenhar um papel muito relevante na promoção do destino Portugal e captação de investimento para o nosso país.
Não destacaria nenhum setor em particular, considerando que a presença de investimento brasileiro no nosso país tem vindo a alastrar a vários setores da nossa economia. O trabalho da AICEP centra-se sobretudo em garantir que os projetos que se instalam no nosso país representam valor acrescentado, com soluções transacionáveis, geração de empregos e impacto direto na especialização da indústria portuguesa. Ainda assim, o setor dos serviços de base tecnológica é, talvez, aquele onde as vantagens competitivas de Portugal são mais apreciadas pelos investidores brasileiros.
Nos últimos anos, destacaram-se projetos bilaterais no setor tecnológico, agroalimentar, saúde, energias renováveis e turismo. Que parcerias empresariais destacaria como exemplares da nova fase da cooperação económica entre Portugal e Brasil?
A par de uma parceria que já não é nova mas que se renova permanentemente, que é a parceria com a Embraer, destacaria outras duas que marcam o tempo muito virtuoso que vivemos na nossa cooperação: a parceria entre a AICEP e a sua homóloga brasileira APEX, que ganha novos contornos através da abertura de um escritório da APEX em Lisboa, e a parceria entre a prestigiada instituição de investigação científica Fiocruz e várias entidades portuguesas. Mas há muitas outras, algumas das quais foram estabelecidas ou reafirmadas nas duas mais recentes Cimeiras bilaterais, em Lisboa e em Brasília.
A comunidade portuguesa no Brasil é, ainda hoje, uma das maiores e mais antigas do mundo. No entanto, os seus perfis são hoje mais diversos, com novas gerações de luso-brasileiros em ascensão. Como se posiciona a diplomacia portuguesa perante esta transformação da comunidade portuguesa?
A integração da comunidade portuguesa é exemplar! É o que todos os responsáveis políticos, tanto ao nível federal, como estadual e local me têm transmitido. Merece a nossa gratidão ao Brasil, por ter acolhido os nossos cidadãos e permitido que ao longo do tempo tenham encontrado o seu caminho e contribuído tanto para a prosperidade do país.
A nossa rede consular, que além da Embaixada é composta por 9 postos, de norte a sul e de este a oeste deste país, acompanha com grande atenção às nossas comunidades, as suas associações, cívicas e comerciais, o trabalho dos hospitais de origem portuguesa, bem como o que é realizado por empresários e empreendedores neste vasto e diverso Brasil.
Notamos, contudo, um crescente envelhecimento da nossa comunidade, digamos “original”, designadamente dos cidadãos portugueses nascidos em Portugal. Mas registamos igualmente um crescente interesse por Portugal da parte de luso-descendentes, que buscam as suas origens, a nacionalidade portuguesa. Muitas pessoas querem reforçar os seus laços e conhecer mais sobre o nosso país, a sua gastronomia, os seus vinhos, bem como a sua cultura, com destaque para a literatura e a música. Temos feito todo o possível para corresponder a esse interesse.
A presença crescente de artistas, autores e músicos tanto em Portugal como no Brasil tem contribuído de forma decisiva para o estreitamento das relações culturais e a promoção da língua portuguesa através de uma diplomacia informal e criativa. No entanto, muitos consideram que este fluxo de influências ainda não é totalmente estruturado ou aproveitado ao máximo. Na sua perspetiva, há margem para uma maior formalização dessa dinâmica, nomeadamente através de acordos de coprodução, bolsas culturais, ou intercâmbios artísticos, que possam promover não apenas a troca de ideias e talentos, mas também consolidar o potencial da cultura como um vetor de soft power nas relações bilaterais?
Como sucede noutras áreas é fruto de anos e anos de intensificação de proximidades e afinidades, a relação entre os nossos países na área cultural vai muito além das políticas públicas, e ainda bem que assim é. Todos os anos propomos ao Instituto Camões um plano de atividades culturais, a pôr em prática no ano seguinte, em que procuramos dar coerência ao que se vai fazendo pelo Brasil afora, em todos os domínios em que a atividade cultural se declina.
Esse plano é complementado, felizmente, por dezenas de atividades de iniciativa portuguesa ou brasileira, ou comum, apoiadas por empresas, pela sociedade civil, fundações, etc.
Mal seria se pensássemos que tudo está muito bem como está, isso seria acomodação, e acomodação é normalmente mau sinal. Por isso, tentamos sempre melhorar canais e procurar novas fontes de apoio. Não é tarefa fácil, mas temos tido sucesso. Dou-lhe dois exemplos: a exposição “fascinação”, de Joana Vasconcelos, presente nos jardins da nossa Embaixada, onde o investimento público foi diminuto, e uma exposição que fizemos em 2024, “arte no jardim”, que envolveu obras do CAM da Gulbenkian e de vários artistas portugueses e brasileiros, e onde mais uma vez esse investimento público também foi diminuto.

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A interligação entre universidades portuguesas e brasileiras intensificou-se nos últimos anos, com crescente mobilidade académica e projetos de investigação conjunta. Que impactos concretos essa cooperação tem gerado e que papel pode desempenhar na afirmação da lusofonia científica?
A promoção da ciência em língua portuguesa é naturalmente uma prioridade. Mas os seus resultados são-no mais ainda, dado o impacto que podem ter na vida das pessoas, no desenvolvimento sustentável, na proteção de bens como a biodiversidade e os oceanos, na promoção da saúde das nossas populações, no funcionamento dos serviços públicos.
Para além do prestígio que queremos que a Língua Portuguesa tenha a nível internacional, condizente com a circunstância de ser a quinta mais falada no mundo e a primeira no hemisfério sul.
Além dos múltiplos acordos de cooperação entre universidades portuguesas e brasileiras, existem muitas redes informais entre investigadores dos dois países, que se conectam e trabalham juntos em projetos, muitos deles apoiados por Portugal e pela União Europeia.
Quais as formas de fomentar um diálogo intercultural mais profundo, que permita uma maior compreensão das realidades sociais, políticas e culturais de ambos os países, e que evite as generalizações? E, no seu entender, que papel pode a diplomacia cultural e a comunicação institucional desempenhar na construção de uma imagem recíproca mais realista e enriquecedora?
A diplomacia cultural e a comunicação institucional, como disse, são pilares estruturantes nessa reciprocidade onde deve ter lugar, constantemente, o respeito mútuo histórico (a história não se pode reescrever-se, pode é reler-se) com os olhos do presente e no futuro. A pedagogia é essencial e por isso privilegiamos muito o trabalho com as escolas, e não apenas os grandes e médios eventos. A representação do Instituto Camões no Brasil é um bom exemplo do que digo através da multidisciplinaridade da sua intervenção, não apenas em Brasília como noutras cidades de todo o Brasil.
Para concluir, como imagina a relação entre Portugal e Brasil daqui a 25 anos? Quais são, na sua visão, os elementos-chave para que essa relação se torne mais estratégica e solidária, contribuindo para um mundo lusófono mais unido e influente, especialmente nas áreas de governança global, sustentabilidade e inovação?
25 anos são pouco mais de 10% de 200 anos. A nossa relação tem tudo para durar por mais 200 anos. O mundo passa por um período de turbulência, já passou por outros antes, e há que não abandonar os valores que tanto Portugal como o Brasil prosseguem. Os dois países possuem uma matriz de diálogo, não apenas entre si, mas no contexto global. Construtores de pontes.
Daqui a 25 anos, vejo a Língua Portuguesa como Língua Oficial nas Nações Unidas, a CPLP com uma atuação multidimensional que pode fazer a diferença na comunidade internacional, Portugal com um novo mandato como membro não-permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, depois do sucesso do mandato 2026-2027, e o Brasil finalmente como membro permanente deste mesmo Conselho.